Não consigo compreender o porquê de nos tornarmos dependentes dos outros. Como se a nossa vida não fizesse qualquer sentido quando estamos sozinhos. Precisamos da atenção, das palavras dos outros. É tão estranho, tão absurdo. E o mais estranho é sabermos que os outros não nos querem, não se importam. Cada vez mais as pessoas vivem no seu mundo, sem preocupações com os outros. Tão terrível, a sensação de estarmos sozinhos mesmo quando estamos rodeados de pessoas.
Sinto-me triste, desolada. Quase em lágrimas. Só de imaginar que, um dia, quando desaparecer, todos vão ultrapassar a minha não-existência. Talvez exista algum desapontamento, alguma tristeza da parte deles. Mas tudo isso vai passar com a célebre frase: "ela queria que seguisses com a tua vida". Não, não queria. Não quero. Quero que as pessoas se lembrem de mim. Que pensem que a vida delas mudou no momento em que parti. E isso não vai acontecer. Porque se vão defender do sofrimento. Porque vão querer esquecer-me já que não estou perto delas. E eu? Onde fico eu no dia em que ninguém se lembrar de mim? No dia em que ninguém chorar o meu desaparecimento?
O mundo está criado a pensar no Eu. Já ninguém se importa se estás feliz, triste, com problemas. Ninguém quer saber. Bem fingem. Porque esse fingimento os faz sentir-se bem. Sentem-se melhor, pessoas mais dignas, ao dispensarem um pouco de atenção aos problemas dos outros. Mas ninguém pensa realmente nisso. Ninguém se empenha realmente no outro.
As pessoas apaixonam-se três, quatro, cem vezes. E todas as vezes anteriores são esquecidas. Será que deixámos de ser Pessoas? Será que já não nos interessa que o outro faça parte da nossa vida. Queremos esquecer tudo: os maus momentos, os problemas, as pessoas. Não queremos lembrar que já fomos infelizes com determinada pessoa. Não queremos lembrar que choramos. Mas não faz isso parte da vida? Não fazem essas pessoas parte da nossa vida? Então, para quê esquecê-las? Se, por um lado, somos demasiado dependentes das pessoas, por outro, não queremos saber delas. Lá está: essa dependência não é por gostarmos muito de alguém. Simplesmente não queremos sentir a solidão, esse terrível bicho-de-sete-cabeças que nos atormenta dia e noite quando o telefone não toca e ninguém nos pergunta: então, como estás hoje?
A vida é uma montanha russa de procedimentos errados. As nossas perspectivas estão cada vez mais egocêntricas. Estamos cada vez mais obcecados connosco. Cada vez mais fechados. Já não sentimos amor pelo outro. Já não nos importamos. Há quem diga, num gesto que me choca brutalmente por ser tão óbvio, que têm “os seus próprios problemas para resolver” e, por isso, não podem “perder tempo com os problemas dos outros”. Chegamos a um ponto em que a Humanidade podia morrer e ninguém daria por falta dela. Estamos naquela fase em que o mundo se auto-destrói simplesmente porque não olhamos para o lado, porque o que está ao nosso lado não retém a nossa atenção. Fechamos os olhos à miséria do outro porque nos importa apenas a nossa própria miséria. Quando é que nos tornámos tão frustrantemente egoístas? Quando é que nos tornámos tão horríveis?
Talves um dia a minha fé na Humanidade seja restaurada. Um dia.
Caty.
Ás vezes é difícil. Sem dúvida que é difícil. E eu poderia dizer: se fosse fácil não tinha graça. E não tinha. Mas também não tem graça quando é difícil.
Não vos acontece sentirem-se isolados? Propositadamente isolados? Quererem o mundo mas repudiarem o Mundo?
Há dias difíceis. Há dias impossíveis. E nesses dias não escrevo. Não como. Não falo. Fico quieta no canto da sala a roer as unhas em desespero. Nunca sei como reagir à vida quando os dias são difíceis. Talvez devesse gritar? Mas para quem? Quem, de facto, me ouve senão eu própria, egocêntrica e mesquinha?
Estou só. Nunca sozinha. Mas sempre Só. Deixo-me levar pelo mundo, pelas cores maravilhosas do mundo. Mas estou só. Não tenho vontade de chorar porque isso é dos outros. Para os outros. Chorar não é ser fraco. É ser público. É ser do Mundo e eu não quero. Por isso, mordo o lábio. Oh, como gostava de ser gente. De ser incógnita. De ser igual a vocês. Tão simples como um café pela manhã. Tão despreocupada. Certamente abandonaria o meu canto da sala. Sentar-me-ia no sofá, embrulhada em mim e em vocês. Mas estou só. Ninguém me atinge e enfraqueço quando me tocam, quando me ouvem. Por que quero eu o mundo quando não o vejo, não o sinto? Por que quero eu viver se não amo a vida? Ah, tudo é tão dificil, tão entediante.
Há dias dificeis.
Há dias impossíveis.
Caty.
Há dias assim. Há dias em que nos sentimos despojados de tudo. Não o sentes? O vazio? O zunzum do silêncio? É tão absurdo e tão desesperante. Como se estivesse à espera que alguma coisa acontecesse. Há uma preguiça que se instala no meu corpo, que me deixa dormente. Sinto que quero tudo e nada me satisfaz. É como uma correria, uma rapidez que cresce dentro de mim. Nunca estou plena. Nunca estou em paz. Aborreço-me comigo. Esqueço-me de mim. E passo horas, sentada numa divagação absolutamente destrutiva.
Nestes dias, se tivesse coragem, matava-me. Não porque queira morrer. Mas porque só assim acalmaria o fogo, a ofensa e a vaidade de nada me satisfazer. Sou bizarra nestes dias. Sou cruel. Sou feia. Não sei o que dizer nem o que fazer. Sinto um sufoco imenso que me tolda os sentidos. Imerso-me em considerações sobre a vida. E, por isso, me matava. Me sufocava até à morte. Só pelo prazer de renascer. Não consigo dormir nestes dias. Não consigo pensar. Nem sentir. Só consigo existir e, mesmo assim, fracamente. Quem sou eu e o que faço aqui são questões que não consigo sequer colocar quanto mais responder.
No final do dia vejo um filme e desejo desesperadamente estar no filme. Ser a protagonista. A heroína. Ser arrebatada por um beijo sedutor de finais dos anos 30. Desejo o impossível encontro de mentes sãs. Mas como ouso? Sou perversa nestes dias: seria capaz de morrer. Morrer apenas e nunca morrer somente. Como? Como paro eu de escrever quando nem os meus dedos me obedecem? Sinto-me capaz de tocar o céu mas as dores nas costas impedem-me. E, ao longe, a promessa da Primavera. Do futuro. Do futuro que me faz sentir receio. Medo. Terror. Petrifico ao som dos pássaros. Não sei o que pensar sobre eles. Ou sobre o sol. Nem o sei distinguir das sombras das nuvens. Oh, Deus! Como ouso dizer que me matava quando estou a viver? Viver é não sentir, sabes? É fechar os olhos às diversas questões do mundo. É não respirar. Não falar. Não ouvir. É viver. É correr, saltar, gritar. É não esperar nada da vida excepto a morte. Não! É precisamente não esperar a morte. Não a querer, não a ter. Ambiciono possuir a vida e deitar fora a morte. E, por isso, me matava. Dizem que é preciso coragem e eu só sei existir. Só sei Ser. Não sou corajosa nem quero sê-lo. Deito ao mar a bondade da morte. E vivo. Fugazmente nunca! Delirantemente sempre. E os dedos doem-me. Não porque os sinta. Mas porque os vejo doer. Eles desfazem-se e criticam-me. E eu continuo a bater com eles no teclado. E na mesa. E no ar. Ah, sim! É no ar que eles se dissolvem. Tal como eu.
Olhei-me ao espelho e já não era eu. Terei morrido? Obcecada pensei que sim. E tentei ser outra. Mas não morri. Por isso, sempre fui a mesma. E a dor continua. E o texto vai longo. E eu não morri.
Para acompanhar a história é favor pedir a Aznavour que cante:
I
Aznavour. Naquele salão ressoava o jazz. Une chanson d’amour, claro. Um ritmo carregado. Adequado, portanto. Lá estava ela. Fita verde num contraste dos cabelos castanhos e um vestido azul. Sentada numa das cadeiras encostadas às infinitas paredes. Há sempre alguém encostado a uma parede quando morre de amor. Parecia demasiado zangada para dançar. Empertigava o pescoço. O rosto sério. Mas fácil.
De repente, um rapaz alto e delicado estendeu-lhe a mão. O sorriso colorido e o tom rebelde fizeram-na recuar na zanga. Dançaria com ele? Porque não? Seguindo Je cherche mon amour, empurraram o que lhes dificultava os passos. Compasso a compasso.
II
A música estava no auge. Atrever-se-ia o rapaz elegante à questão amedrontada?
- Estou perdoado? – Nenhum deles sabia a resposta. Nunca se sabe a resposta nestes casos solenes. O perdão evapora-se ou perdura. Consoante o tempo, a dança, a vida. A música estava, agora, quase no fim. Aznavour dava os últimos tons àquela oportunidade de reconquista. “Apressa-te”, pensava o jovem. Antes que chegue o fim. O medo do fim da música. Sempre o fim da música.
Por fim, o silêncio. Ah, o tom escuro e denso de não se ter nada para dizer. Desejavam ser cegos. Mudos já o eram e não lhes agradava a partitura.
“A cadeira ainda está livre…”. Quem pensava assim? Ele? Ela? Os dois em sintonia e em pleno desejo do fim?
III
Chovia na passagem de uma música para outra. O cantor? Ninguém sabia dizer.
Algures, ele entregara um guarda-chuva. Ah, lá estava o senhor de casaca bordeaux. Lembrou-se do quão nervoso estava ao entrar. Deixara cair o casaco e o chapéu. Reparou no sorriso condescendente do senhor da casaca bordeaux.
Chegara ao salão apenas para dançar com ela. Seria a última vez? Estremeceu ao pensar no futuro. Seria sempre assim? Uma dança. Uma pausa. Uma dança. Uma pausa. Talvez fosse essa a musicalidade da vida…
Quando a viu, já ela vestira o casaco. Comprido e engraçado na sua figura pequena e delicada. Sobre os ombros. Mais tarde, lembrar-se-ia de como era nela um hábito nunca vestir o casaco comprido. Apenas acomodá-lo ao seu corpo delgado. Talvez um dia fosse moda. Hoje era apenas um hábito.
Viu-lhe os sapatos pretos. Um deles estava irrequieto no seu pé. Talvez ela já não estivesse tão paciente.
Depois o colar. Teria alguém oferecido um colar à sua amada julgando que ele seria usado após o esquecimento do amor? Ah, a matéria. Sempre a volátil matéria.
Depois os olhos. Corou. Eram castanhos. Tão banais. E, ao mesmo tempo, tão profundos.
- Vamos? – O sobressalto dela não lhe agradou. Talvez se Aznavour ainda se fizesse ouvir, ela não se teria assustado com o toque dele.
Alguém forçou um riso no salão. Hoje em dia toda a gente força o riso. Também eles sorriram. E saíram. Continuava a chover lá fora. Entre eles, ainda soava a procura do amor que o cantor da Chanson Française incentivara. Mas nenhum deles percebera a mensagem, talvez. Apenas seguiram. Chovia cada vez mais. Mas seguiram. Firmes. Afastados um do outro pelo eterno problema da incompreensão.
E seguiram.
Terá alguém voltado a vê-los dançar?
Caty.
O mundo é cego. Escuro, sombrio e quieto.
As pessoas desfazem-se em vazios. Como se nada lhes pertencesse. Como se não quisessem conhecer os outros. Somos fracos e nunca francos. Somos egocêntricos, desumanos e cruéis. E quantos de nós se perguntam: o que fiz eu de errado hoje?
O que interessa? O objectivo pessoal, o olhar para dentro, o nunca sair da linha que nos leva à meta. O outro que espere. O outro que morra de fome, de tristeza, de tédio. O outro que não exista. Somos tristeza. Somos fracasso. Somos apenas isto. Não vemos nem queremos ver.
Mas porquê? Desde quando nos deixámos de conhecer? De saber quem caminha ao nosso lado? Nunca lhe perguntamos o nome. Nunca queremos saber de onde vem. Para onde vai. A solidão foi criada por nós. Cegos, empurrámos a solidão para o outro. Desdenhámos a sua companhia. Não lhe respondemos, não nos preocupámos. E, um dia, soubemos que morreu. Que mudou de casa. Que fugiu do mundo. E questionamos a sua existência. Mas nunca questionamos a nossa própria existência. Somos sozinhos e nunca tornámos isso uma filosofia. É um questão de vaidade? De necessidade? Ou puro egoísmo?
Não compreendemos a dimensão da humanidade, então. Achamo-nos eternos e não aproveitamos o interior, a dádiva e o conhecimento de quem se senta ao nosso lado na paragem de autocarro. Não nos interessamos por quem está na fila do supermercado. Voltamos para casa e vivemos intensamente o nosso mundo. Como se só ele valesse a pena.
E, então, somos apenas momentos. Imagens que vaguearam por este mundo. Todos nós: os ignorados e os ignorantes.
Caty.
Tenho sido perseguida por um barulho. Um tambor, talvez. Uma trovoada. Como se eu fosse essa trovoada. Como se, lá longe, se adivinhasse o futuro. E eu, aqui sentada, não o percebesse. Aproxima-se, a passo lento, carregado. E eu aqui sentada. Sem me aperceber que o mundo vai acabar.
De repente. Sem que me comova, cresça ou renasça, o mundo redescobre-se. E eu, já não aqui sentada, entrego-me à deliciosa noção da vida. À melancolia. Ao ócio, atrevo-me. E para quê? A noite chega e tudo irrompe nesse pessimismo doentio. Tudo se transforma novamente. É o cansaço da vida. O horror de ser e não ser e voltar a ser. Tudo porque nunca sou. Nunca poderei ser quando nada me prende ao mundo. Voltei a estar aqui sentada. Sentada, apenas.
Caty.
Todos os dias. TODOS. Aquele som de crueldade. Aquela dor de cabeça.
É como a morte mas sem silêncio.
É como o silêncio mas sem a vida.
Apenas vejo os fragmentos. Os vidros que parti enfurecida.
Apenas sinto o barco a afundar. Ah, a eterna figura do náufrago. O poder de quem conhece a morte.
Quantas foram as vitimas?
Tremo ao imaginar-me sem um luar.
Mas, afinal, sonhei com o fim do mundo?
Não o fim. Mas o inicio do fim.
Todos os dias.
TODOS.
Caty.
Há uma euforia imensa da minha parte quando o século XIX surge na minha literatura. Se é obsessão, curiosidade ou, simplesmente, uma noção do que não vivi, vivendo, não sei.
O estilo vitoriano é agradável. E rude, ao mesmo tempo. É essa precisa dualidade que me inspira o gosto e me requinta a alma. As razões que me levam a Jane Eyre, O Monte dos Vendavais ou ao cruel e amoroso Drácula não são racionais: o espirito que sobrevive nesta literatura é superior à razão.
Apercebo-me que a tentativa dos autores em recriar o mundo é mais do que uma simples tentativa. É uma conquista pelo saber Ser Humano.
Se pensarmos num Dr. Jekyll sentimos um Mr. Hyde. Penso que é aí que reside o espirito romântico. Esse lado obscuro e em tons carregados que mais nenhuma literatura pretende. Esse Ser completo que é um e outro. Essa luta entre o bem e o mal que, narrativamente, existe em dois e na realidade é só Um. Essa pretensiosa (e conscienciosa, quem sabe) dualidade que não nos destrói com Pessoas mas nos eleva a um estado de perfeição. Só os românticos observaram o equilíbrio. A existência do lado lunar. O ser bom enquanto se é mau.
Mas, na verdade, o que mais espanta é a necessidade de criar a narrativa simplificada. O objecto de escrita não é a acção. Cada personagem existe por si. É caracterizada. É realizada através do seu psicológico. São as personagens que representam a acção. São elas que dão o nome à obra. Anna Karenina é a protagonista, a narrativa e o nome do romance de Tolstoi. Jane Eyre segue a mesma linha. E embora uma sucumba à sua teia de consequências, a segunda realiza-se e transforma-se. Evolui, portanto.
Ainda assim, a literatura do século XIX é repleta de recantos, de momentos escuros e de personagens "horríveis" e suplicantes. Uma literatura que está para além da escrita. É, sem dúvida, uma necessidade de mostrar o Mundo ao mundo.
Caty.
Não posso nunca escrever em paz.
Talvez porque não a sinto. Ou porque ela não existe. No fundo, porque ela jamais me fará escrever.
Não sou nenhum verso oprimido. Muito menos uma folha frustradamente amachucada.
Talvez, sendo eu tão lenta a entender que sou infeliz, não poderei escrever enquanto a alma se afoga no leito dos meus olhos.
Talvez seja sensato não escrever.
Não falar.
Não pensar, até.
Quem sabe se viver não é reconhecer a impávida metamorfose do Ser.
Então, nesse desgostoso labirinto que é o infernal mundo desisto de escrever e vou dormir.
Caty.
Não sei o que é! Confesso que nunca me preocupei em ponderar sobre a ilusão. Talvez seja a idade, o calor da maturidade ou o simples cansaço da infantilidade. Quero sentir tudo e sinto tudo. A intensidade move-me e comove-me. Sou um cristal que chora a realidade de outros enquanto minha. “Sentir tudo de todas as maneiras” segreda-me Campos ao ouvido da consciência. Respondo-lhe que quero ser tudo de todas as maneiras. Ele sabe que sou tão Nada que só o vazio me pode preencher. São as verdades do mundo que me isolam até de mim. Sou de uma tão peculiar e nefasta visão que me aqueço na imagem de um peso morto. Sou uma Garbo que ri na sua impossibilidade deixada sozinha à beira do passeio. Sou, num subtil desaire, uma Woolf suicida. Sou eu, então, naquela comoção dos dias.
al berto. poesia. prosa. desabafos.
anna karenina. desabafos. literatura. ci
ego. grito. coragem. desabafo.
mudança. desabafos. ego. coragem.
revolução. desabafos. grito. silêncio.
silêncio. ego. paisagem. lá fora.