Há dias assim. Há dias em que nos sentimos despojados de tudo. Não o sentes? O vazio? O zunzum do silêncio? É tão absurdo e tão desesperante. Como se estivesse à espera que alguma coisa acontecesse. Há uma preguiça que se instala no meu corpo, que me deixa dormente. Sinto que quero tudo e nada me satisfaz. É como uma correria, uma rapidez que cresce dentro de mim. Nunca estou plena. Nunca estou em paz. Aborreço-me comigo. Esqueço-me de mim. E passo horas, sentada numa divagação absolutamente destrutiva.
Nestes dias, se tivesse coragem, matava-me. Não porque queira morrer. Mas porque só assim acalmaria o fogo, a ofensa e a vaidade de nada me satisfazer. Sou bizarra nestes dias. Sou cruel. Sou feia. Não sei o que dizer nem o que fazer. Sinto um sufoco imenso que me tolda os sentidos. Imerso-me em considerações sobre a vida. E, por isso, me matava. Me sufocava até à morte. Só pelo prazer de renascer. Não consigo dormir nestes dias. Não consigo pensar. Nem sentir. Só consigo existir e, mesmo assim, fracamente. Quem sou eu e o que faço aqui são questões que não consigo sequer colocar quanto mais responder.
No final do dia vejo um filme e desejo desesperadamente estar no filme. Ser a protagonista. A heroína. Ser arrebatada por um beijo sedutor de finais dos anos 30. Desejo o impossível encontro de mentes sãs. Mas como ouso? Sou perversa nestes dias: seria capaz de morrer. Morrer apenas e nunca morrer somente. Como? Como paro eu de escrever quando nem os meus dedos me obedecem? Sinto-me capaz de tocar o céu mas as dores nas costas impedem-me. E, ao longe, a promessa da Primavera. Do futuro. Do futuro que me faz sentir receio. Medo. Terror. Petrifico ao som dos pássaros. Não sei o que pensar sobre eles. Ou sobre o sol. Nem o sei distinguir das sombras das nuvens. Oh, Deus! Como ouso dizer que me matava quando estou a viver? Viver é não sentir, sabes? É fechar os olhos às diversas questões do mundo. É não respirar. Não falar. Não ouvir. É viver. É correr, saltar, gritar. É não esperar nada da vida excepto a morte. Não! É precisamente não esperar a morte. Não a querer, não a ter. Ambiciono possuir a vida e deitar fora a morte. E, por isso, me matava. Dizem que é preciso coragem e eu só sei existir. Só sei Ser. Não sou corajosa nem quero sê-lo. Deito ao mar a bondade da morte. E vivo. Fugazmente nunca! Delirantemente sempre. E os dedos doem-me. Não porque os sinta. Mas porque os vejo doer. Eles desfazem-se e criticam-me. E eu continuo a bater com eles no teclado. E na mesa. E no ar. Ah, sim! É no ar que eles se dissolvem. Tal como eu.
Olhei-me ao espelho e já não era eu. Terei morrido? Obcecada pensei que sim. E tentei ser outra. Mas não morri. Por isso, sempre fui a mesma. E a dor continua. E o texto vai longo. E eu não morri.
Para acompanhar a história é favor pedir a Aznavour que cante:
I
Aznavour. Naquele salão ressoava o jazz. Une chanson d’amour, claro. Um ritmo carregado. Adequado, portanto. Lá estava ela. Fita verde num contraste dos cabelos castanhos e um vestido azul. Sentada numa das cadeiras encostadas às infinitas paredes. Há sempre alguém encostado a uma parede quando morre de amor. Parecia demasiado zangada para dançar. Empertigava o pescoço. O rosto sério. Mas fácil.
De repente, um rapaz alto e delicado estendeu-lhe a mão. O sorriso colorido e o tom rebelde fizeram-na recuar na zanga. Dançaria com ele? Porque não? Seguindo Je cherche mon amour, empurraram o que lhes dificultava os passos. Compasso a compasso.
II
A música estava no auge. Atrever-se-ia o rapaz elegante à questão amedrontada?
- Estou perdoado? – Nenhum deles sabia a resposta. Nunca se sabe a resposta nestes casos solenes. O perdão evapora-se ou perdura. Consoante o tempo, a dança, a vida. A música estava, agora, quase no fim. Aznavour dava os últimos tons àquela oportunidade de reconquista. “Apressa-te”, pensava o jovem. Antes que chegue o fim. O medo do fim da música. Sempre o fim da música.
Por fim, o silêncio. Ah, o tom escuro e denso de não se ter nada para dizer. Desejavam ser cegos. Mudos já o eram e não lhes agradava a partitura.
“A cadeira ainda está livre…”. Quem pensava assim? Ele? Ela? Os dois em sintonia e em pleno desejo do fim?
III
Chovia na passagem de uma música para outra. O cantor? Ninguém sabia dizer.
Algures, ele entregara um guarda-chuva. Ah, lá estava o senhor de casaca bordeaux. Lembrou-se do quão nervoso estava ao entrar. Deixara cair o casaco e o chapéu. Reparou no sorriso condescendente do senhor da casaca bordeaux.
Chegara ao salão apenas para dançar com ela. Seria a última vez? Estremeceu ao pensar no futuro. Seria sempre assim? Uma dança. Uma pausa. Uma dança. Uma pausa. Talvez fosse essa a musicalidade da vida…
Quando a viu, já ela vestira o casaco. Comprido e engraçado na sua figura pequena e delicada. Sobre os ombros. Mais tarde, lembrar-se-ia de como era nela um hábito nunca vestir o casaco comprido. Apenas acomodá-lo ao seu corpo delgado. Talvez um dia fosse moda. Hoje era apenas um hábito.
Viu-lhe os sapatos pretos. Um deles estava irrequieto no seu pé. Talvez ela já não estivesse tão paciente.
Depois o colar. Teria alguém oferecido um colar à sua amada julgando que ele seria usado após o esquecimento do amor? Ah, a matéria. Sempre a volátil matéria.
Depois os olhos. Corou. Eram castanhos. Tão banais. E, ao mesmo tempo, tão profundos.
- Vamos? – O sobressalto dela não lhe agradou. Talvez se Aznavour ainda se fizesse ouvir, ela não se teria assustado com o toque dele.
Alguém forçou um riso no salão. Hoje em dia toda a gente força o riso. Também eles sorriram. E saíram. Continuava a chover lá fora. Entre eles, ainda soava a procura do amor que o cantor da Chanson Française incentivara. Mas nenhum deles percebera a mensagem, talvez. Apenas seguiram. Chovia cada vez mais. Mas seguiram. Firmes. Afastados um do outro pelo eterno problema da incompreensão.
E seguiram.
Terá alguém voltado a vê-los dançar?
Caty.
al berto. poesia. prosa. desabafos.
anna karenina. desabafos. literatura. ci
ego. grito. coragem. desabafo.
mudança. desabafos. ego. coragem.
revolução. desabafos. grito. silêncio.
silêncio. ego. paisagem. lá fora.